domingo, 30 de abril de 2017


APENAS UM EPISÓDIO DA VIDA DE UM PADRE QUE PRATICAVA O EVANGELHO EM SUA ESSÊNCIA

Foi um tempo de aflição aquele em que Padre Almeida substituiu por um breve período seu colega Mário Rino Siviere na Paróquia de Nossa Senhora da Piedade de Lagarto. Nosso município tinha à frente do executivo um prefeito que encarnava todas as características de um coronel, de um ditador mesmo. As marcas do mandato Artur de Oliveira Reis eram o desmando administrativo, as perseguições sem tréguas aos adversários e a desvalorização permanente do funcionalismo público. Nesse momento de sua administração, Artur demitiu inúmeros funcionários, inclusive muitos professores, sem que lhes fossem pagos os direitos trabalhistas. Para piorar ainda mais a situação, o salário de um professor foi sendo rebaixado até atingir 25% do salário mínimo (isso mesmo: vinte e cinco por cento do salário mínimo em vigor à época - a título de comparação, se Artur fosse o prefeito de Lagarto hoje (2017), um funcionário da prefeitura estaria recebendo por mês o equivalente a R$ 234,25).

Diante desse quadro, Padre Almeida, que era um religioso possuidor de uma formação social e humanitária, de imediato não só se colocou ao lado dos demitidos, como fez todo um movimento na cidade, e até organizou uma campanha para arrecadar alimentos - uma vez que os servidores também estavam​ há três meses sem receber salários​. Por sua vez, os professores municipais se uniram a um Grupo de Jovens existente na cidade, para juntos promoverem uma manifestação durante uma procissão que percorreria as principais ruas da cidade à noite, logo após a missa. Os organizadores decidiram ainda sair com cartazes e faixas, com frases que denunciavam as arbitrariedade e as demissões, assim como outros problemas vividos pela sociedade Lagartense - e que eram resultado, também, do desastre administrativo experimentado naquele momento pela sociedade.

Como já era de esperar, Padre Almeida apoiou e orientou desde o primeiro momento a realização da manifestação idealizada pelos fiéis. A vida sacerdotal de padre Almeida se confundia com seu envolvimento com as causas sociais. Padre Almeida era um religioso que vivia e praticava o evangelho em sua essência. Ele pescava almas, mas era ele também, acima de tudo, um ser político que ensinava os homens a irem à luta, a cobrarem direitos. Desde que chegou em Sergipe vindo de Sobral no Ceará, padre Almeida sempre esteve em comunhão e ao lado dos humildes, dos perseguidos e necessitados. Ele fundou associações de moradores e de agricultores, criou cooperativas e lutou sem descanso para garantir a fixação de milhares de famílias no campo. Almeida também fundou e dirigiu escolas em diversas cidades do nosso estado, para garantir assim formação libertadora para pessoas comuns e para os filhos dos trabalhadores. 

Seguido orientações do pároco da cidade, os componentes do grupo de jovens, os professores, boa parte dos demitidos e os fiéis mais assíduos começaram a encher a praça da matriz assim que a noite dominou por completo a cidade. A expectativa estava no ar. Seriam​ uma procissão e uma novena diferentes. Seria provavelmente a primeira vez em que uma​ classe oprimido usava o recurso da força da religião, com o apoio incondicional da autoridade eclesiástica da cidade, para expor de forma inusitada seu sofrimento à sociedade. Aquilo não deixava de ser um ato de ousadia, de afronta e desafio público ao dublê de coronel que comandava com mão de ferro a prefeitura de Lagarto.

Tudo estava pronto para a realização da novena e da manifestação - na praça Nossa Senhora da Piedade, o número de fiéis superava em muito aquele que costumava frequentar as missas durante a semana. De repente, quanto os relógios marcavam 18h30, as luzes da igreja e das ruas se apagaram. Ninguém contava com um blecaute àquela hora, muito menos num momento especial como aquele. Não era noite de lua, e por isso tudo ficou escuro feito breu. As pessoas ficaram um pouco em dúvida: o que fazer agora, esperar o restabelecimento da luz artificial, ou tomar as ruas assim mesmo? Decidiu-se pela segunda alternativa, pois, naquele momento, uma notícia passou a circular na praça, dando ainda mais sentido à realização daquela novena. O que se ficou sabendo é que o prefeito era quem tinha ordenado o desligamento das luzes da cidade. 

Essa notícia provocou ainda mais indignação e deu mais ânimo aos presentes. Decidiu-se que a procissão/manifestação tomaria as ruas com as luzes apagadas mesmo. Padre Almeida manteve a serenidade, a calma que lhe era peculiar, mas reuniu ali mesmo seu rebanho e agiu com determinação, cuidando para que fossem providenciadas ainda mais velas. Logo em seguida, a procissão tomou as ruas. Carros foram estacionados estrategicamente nas esquinas e as luzes dos faróis passaram a cortar a multidão de fiéis em todas as direções, formando um contraste de rara beleza, fascinante de se ver! Agora a procissão parou por cinco minutos em frente à prefeitura, e as rezas e os cânticos passaram a ser entoados a plenos pulmões. A emoção se espalhou e dominou os presentes. Mulheres deixaram as lágrimas escorrerem livremente por seus rostos; homens contiveram a emoção travada na garganta. Era muito bonito tudo que se via e se vivia naquela noite em que as passagens do evangelho ganhavam verdadeiro sentido na voz de Padre Almeida.

A repercussão de tudo que foi protagonizado pelos fiéis e pelos funcionários municipais naquela novena memorável foi grande, e as reações ao movimento conduzido por Padre Almeida e pelo Grupo de Jovens não tardaram. Na segunda-feira que procedeu o ato, o prefeito municipal convocou duas professoras para que as mesmas comparecesse em seu gabinete (elas haviam participado ativamente do ato, mas não tinham responsabilidade direta por sua organização, já que o mesmo fora convocado pelo Grupo de Jovens). Quando as duas mulheres pisaram os pés na porta da prefeitura, foram recebidas com berros e xingamentos. O chefe do executivo colocou o dedo em riste - ora na cara de uma, ora na cara da outra. A prefeitura estava cheia de gente, mas o prefeito não baixou o dedo nem a voz sequer por um segundo quando deixou bem claro para as professora que não queria terroristas nem comunistas​ prestando serviço para ele. Indiferente aos argumentos de uma das professoras​ - que não se intimidou diante da grosseria do prefeito, e até tentou explicar, mostrar para ele no mesmo tom de voz que a intenção delas não foi a de prejudicar, mas sim participar de um movimento organizado pela Igreja -, Artur deu as costas e se dirigiu a uma das salas, onde ordenou à funcionária responsável que batesse a demissão daquela professora atrevida.

Para além de acirrar os ânimos entre o chefe do executivo e o funcionalismo público do município de Lagarto, esse episódio em particular transformou Padre Almeida numa pessoa má vista aos olhos dos que estavam no poder no município de Lagarto. Quando Padre Mário Rino Siviere retornou de sua viagem a Itália e Almeida foi nomeado para assumir a paróquia da Colônia Treze, esboçaram-se reações contrárias, e chegaram até mesmo a falar com o Bispo de Estância, Dom Bezerra Coutinho, que não admitiu palpites de terceiros na questão, alegando que, como a Igreja não interferia na política de Lagarto, ele - o Bispo - não aceitava interferências em questões da Diocese. E foi assim que Padre Almeida assumiu a paróquia da Colônia Treze - onde foi ensinar o verdadeiro sentido do evangelho, forjar novas consciências e saciar os que tinham fome e sede de justiça social.

(Eduardo Bastos)

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