quinta-feira, 28 de abril de 2016

OS PENITENTES DO POVOADO JENIPAPO



Eduardo Bastos 

Uma tradição de mais de 50 anos é resgatada por uma irmandade num dos povoados mais importante do município de Lagarto. Fomos lá conferir a história da criação e práticas desse grupo naquela comunidade




Penitentes rezam numa das casas da comunidade
Adriana Paixão e Mônica Barbosa são duas amigas nossas que residem no povoado Jenipapo, aqui em Lagarto. Dia 24 de fevereiro do corrente eu conversava com elas numa rede social, quando Adriana me perguntou se eu conhecia um grupo de penitentes que saem nas ruas daquele povoado no período da quaresma. Eu disse que não conhecia, e as duas me mostraram fotos. Eu afirmei que aquilo era interessante demais e, nessa mesma noite, e por coincidência, Adriana e Mônica fotografaram e filmaram os penitentes enquanto eles rezavam numa das casas do povoado.

Fiquei com aquele história na mente, as imagens e os vídeos no aparelho celular e, no dia seguinte, ao encontrar meu amigo Kiko Monteiro na câmara de vereadores de Lagarto, mostrei-lhe as imagens e sugeri que aquilo daria uma bela reportagem para o Portal Lagartense. Kiko, que trabalha no site, concordou comigo na hora, e então voltei a manter contato com Adriana que, por sua vez, se encarregou de providenciar tudo que pudesse viabilizar nosso encontro com o "mediador" do grupo de Penitentes do povoado Jenipapo.

Dia 16 de março de 2016 eu, Kiko Monteiro, Benício Junior, Letícia Paz e Afonso Augusto fomos ao encontro dos Penitentes que enchem as noites dos jenipapenses com suas rezas, seus cânticos, sinos, e o som da matraca. (O amigo Afonso Augusto é, na atualidade, o principal agente cultural de nossa cidade. Mas ele é também, e acima de tudo, um graduado em História, um sujeito interessadíssimo nos fatos do passado e do presente, que tiveram por cenário a nossa cidade e município. Daí meu convite para que Afonso estivesse entre nós, testemunhando o que testemunharíamos àquela noite).

Alguns penitentes usam vestes roxas
Ao chegarmos ao povoado Jenipapo, fomos recebidos na antiga casa paroquial pelo "mediador" dos Penitentes e por nossas cicerones, Adriana e Mônica. Ao longo da entrevista, do papo informal, conseguimos colher informações importantes, relacionadas à origem do Penitentes, o número de integrante do grupo, critérios observados para admissão de novos participantes, detalhes dos rituais, situações e locais em que eles rezam e entoam seus cânticos, etc. Nessa conversa com o “mediador”, inúmeras outras indagações ficaram sem respostas – como a que pedia esclarecimento sobre o porquê do número de participantes do grupo ser sempre ímpar; nunca par. Também ficou sem resposta nosso desejo de saber qual a função da matraca no ritual daqueles Penitentes.

Após quarenta minutos de conversa com o "mediador" do grupo, nos demos por satisfeitos, nos dirigimos a um dos bancos da praça do povoado e ficamos ali sentados, papeando sobre o cenário cultural de Lagarto - sobre o Sarau da Caixa D'água e o Som na Praça -, e sobre Lampião, Maria Bonita e os cangaceiros (Kiko Monteiro é aficionado por esse tema e não ia perder a chance de nos falar sobre isso àquela noite). Ali, na praça, o som da missa não chegava a atrapalhar nossas conversas, e a lua passeava lentamente por sobre nossas cabeças, nos vigiando por entre copas de árvores altas e frondosas, até que o horário de entrarmos em ação chegasse.

Agora os relógios dos celulares denunciavam já passar das 22h. Chegara o instante de sairmos à procura dos Penitentes nas ruas do povoado Jenipapo. Ninguém sabe por antecipação em que beco, praça, rua, viela ou encruzilhada o grupo vai se reunir. Cada um vai surgir do nada no meio da noite, já vestido com sua túnica e com a cabeça coberta por capuz, pois um integrante jamais pode saber da identidade do outro; apenas o "mediador" é quem pode saber de tudo.

O grupo reza em frente a uma residência
Rondamos pelas ruas desertas do povoado atentos a tudo. De repente, Letícia grita dentro do carro que os Penitentes estão indo por ali. Freada brusca. Manobrando com agilidade, Afonso emparelha o carro ao lado do grupo que segue em fila. Todos param diante de uma residência. Preparo a câmera fotográfica e passo-a para que Kiko faça aquele registro. A rua acanhada se enche de curiosos, os flashes quebram a escuridão por milésimos de segundos, o grupo termina a reza e toma o rumo da residência logo ali em frente. Eu e Kiko seguimos logo atrás do grupo, entramos na casa em seguida, pedimos licença a todos, atravessamos a sala por entre os Penitentes e nos postamos em local estratégico. O grupo inicia as rezas e cânticos, e alguns olham assustados para nós por entre os buracos dos capuzes. Preparo mas uma vez a câmera e volto a entregá-la a Kiko, que a empunha com firmeza e abre caminho por entre os Penitentes para garantir fotos fantásticas!

Origem e resgate de uma tradição

O grupo de Penitentes do povoado Jenipapo surgiu na década de 1950 e tinha como lideranças mediadores como Pedrinho, Seu Dionísio e Raimundo de Honório. Os grupos que tinham à frente essas pessoas eram chamados de cordões (Cordões são grupos de penitentes. No passado, haviam três grupos no Jenipapo: o de seu Dionísio, o de seu Pedrinho e o de Raimundo. O quarto “cordão” é constituído pelos penitentes que resgataram a tradição nesse ano de 2016). Há oito anos faleceu seu Raimundo, líder do terceiro cordão, e ai os penitentes ficaram esquecidos na comunidade. O mediador atual, junto com outros irmãos de movimentos da Igreja Católica, resolveram resgatar esse grupo, e o denominaram Senhor do Bomfim, em homenagem ao primeiro padroeiro da comunidade.

O número de integrantes do grupo é sempre ímpar
As atividades do grupo atual tiveram início na quarta-feira de cinzas desse ano de 2016, com visitas a comunidades como as de povoados como Brasília, Quirino, Pista do Araçá e Urubu Grande. O grupo também reza em casas de famílias da comunidade, sempre que para isso são convidados. Os Penitentes rezam ainda em grutas, cruzeiros e também em cemitérios. Eles andam carregando um cipó caboclo com a finalidade única de manter a tradição e, enquanto grupo de lamentações, invoca as almas através de orações e cantos.


Na atualidade, os penitentes do povoado Jenipapo contam com apenas um remanescente dos grupos fundadores. Entre os participantes atuais, encontram-se adolescentes, jovens e adultos. O grupo atual tem 23 membros, que entoam cantos próprios e católicos – já que os penitentes estão vinculados ao catolicismo.

Um grupo que preza o anonimato

As penitencias são feitas exclusivamente na quaresma, no dia da hora – último dia da quaresma - e ainda no dia de finados. O uso do capuz é a forma encontrada pelos penitentes para manter no anonimato cada um dos participantes – a identidade individual é um segredo, um mistério respeitado a todo custo pelos membros do grupo.

Os Penitentes dizem que se transformam enquanto oram
O mediador diz que os penitentes acreditam que, quando estão fazendo suas orações iniciais, todos se transformam. É como se uma força superior, inexplicável e divina viesse ao encontro de todos, fazendo os penitentes se sentirem acompanhados de almas e espíritos do outro lado do mundo. Eles acreditam até que pessoas que no passado lideraram os penitentes se fazem presentes para ajudar e orientar o grupo. Há pessoas do grupo que costumam dizer que chegam até mesmo a ver seres e almas do passado ao redor. O mediador confessa que, em alguns momentos, em algumas casas, já sentiu forças maiores agirem, e até pessoas chorarem do inicio ao fim, não sabendo se isso é motivado pela emoção ou pela ação de seres superiores que estão por ali naquele instante.

Locais em que os Penitentes se fazem presentes

Os Penitentes rezam nas casas quando são convidados
Os penitentes costumam ser convidados para rezar nas casas. Os únicos locais que eles vão de livre e espontânea vontade são nas grutas e cemitérios. Eles também têm alguns pontos geográficos em que rezam, como por exemplo em encruzilhadas e locais em que aconteceram acidentes e tem uma cruz, pois eles sentem que ali tem uma alma que está necessitando de oração, de um aconchego maior. As rezas em encruzilhadas se justificam ainda pelo fato de caminhos se cruzarem em formato de cruz. Para a irmandade dos penitentes do Senhor do Bomfim, a cruz tem um significado maior, que é o “T” - “T” de tudo e de todos. Para a irmandade, Jesus Cristo está acima de tudo e de todos. Segundo o mediador, não existe e nunca existirá um ser superior a Ele. Para os penitentes do Jenipapo, a cruz simboliza o sacrifício e a redenção. Muitos morreram na cruz por conta dos crimes cometidos, mas foi também na cruz que Jesus morreu para a redenção de cada um de nós.

Os penitentes rezam também em grutas por entenderem que foi em uma delas que Cristo nasceu, e por serem locais reservados, em que eles se concentram exclusivamente para fazer orações. Recentemente, os penitentes do povoado Jenipapo estiveram numa gruta localizada no povoado de nome Quirino, e o ritual aconteceu à noite, pois as únicas ocasiões que justificam eles se reunir no período diurno é em dia de procissão do Senhor Morto e nos dias do encontro de Nossa Senhora das Dores com o Senhor dos Passos.


Quem pode participar da Irmandade

As vestes dos Penitentes obedecem a um padrão
Qualquer pessoa pode participar do grupo dos penitentes, mas antes precisa assumir o compromisso de não revelar os nomes de seus membros. Precisa também cumprir com os rituais - previstos no estatuto que rege todas as atividades do grupo. Qualquer homem ou mulher pode participar da irmandade dos penitentes, desde que tenha mais de quatorze anos de idade. Cada participante deverá usar vestes brancas e carapuças na cabeça, mas são abertas exceções para o roxo - algumas pessoas usam túnicas roxas. Não poderá participar do grupo aquele que não tiver testemunho da fé cristã. O mediador esclareceu que a prostituta e o homossexual também podem fazer parte do grupo, uma vez que essas pessoas não são diferentes; apenas fizeram opções diferentes na vida. Mas, como cristãos, e diante de Deus, elas são iguais e têm os mesmos direitos - se elas tiverem a fé cristã serão aceitas normalmente no grupo.

Apenas números ímpares

O capuz nunca pode ser tirado em público
Outras normas observadas no grupo dos penitentes é a de que um participante nunca deve revelar seu nome a terceiros, assim como jamais pode dizer o local da residência onde os penitentes irão rezar - os que tiverem a curiosidade de saber, que espere. Ninguém sabe por onde nem de onde os penitentes irão surgir, ou quando irão “desaparecer”. O Grupo ganha as ruas por volta das 9h ou 10h, com cada membro surgindo já vestindo sua túnica e capuz, e depois “desaparece”, “some” após ter cumprido os rituais. Sempre que o grupo percebe que há pessoas curiosas que já identificaram mais ou menos de onde os penitentes estão saindo, o local de origem é mudado. Nunca um membro do grupo pode tirar a túnica ou o capuz em público - exceção para uma situação em que a polícia esteja realizando uma abordagem. Diante de uma situação como essa, será estabelecido um diálogo, na tentativa de que se permita que as retiradas do capuz e da túnica se deem em local reservado. Se, em algum momento, um dos participantes vier a se identificar, revelando que é um penitente, que faz parte da irmandade, ele estará irremediavelmente fora do grupo, uma vez que estará quebrando uma norma. Um componente do grupo dos penitentes terá, finalmente, que observar as leis, normas e rituais do grupo - há alguns rituais, orações e oferecimentos que quem está participando tem que respeitar.

Um dia inteiro de jejum


Os Penitentes participam das procissões
Os Penitentes do Senhor do Senhor do Bomfim do povoado Jenipapo observam um dia de jejum durante a Semana Santa. Cada um dos seus membros tira um dia para fazer jejum e orar. Um Penitente só poderá deixar o grupo depois de transcorridos sete anos desde seu ingresso. Um indivíduo, ao ingressar na irmandade e se tornar um penitente, assina um documento e assume o compromisso de permanecer no grupo durante sete anos, só podendo se afastar em caso de viagem, de morte, ou de descumprimento das normas - nesse caso, marca-se uma reunião para analisar o ocorrido e submetê-lo à votação, para se saber se o infrator deve, ou não, permanecer na irmandade.

Outras normas observadas pelos penitentes são a de acompanhar a procissão do Senhor Morto e a de ajudar o pároco da igreja quando forem convocados - mesmo nessa situação, não é permitido se revelar as identidades dos penitentes. Naturalmente, cada penitente já participa dos movimentos da Igreja, mas também ai ninguém sabe quem é quem.

O ingresso no grupo é uma decisão pessoal

O cipó caboclo é um componente da tradição
Não há arregimentação de pessoas para o grupo dos penitentes. Aquele ou aquela que deseja participar procura o grupo e manifesta seu desejo. Ao ingressar na irmandade, o indivíduo passa então a ter ciência das normas que a regem. De três em três meses há uma reunião para que seja possível aprender novos cantos e receber (se houver) novos integrantes do grupo. No passado, o número de participantes do grupo dos penitentes era bem maior - e sempre impar; nunca par. O grupo também possui uma identidade própria, mas também pesquisa a história dos três “cordões” anteriores.

As vestes dos penitentes do Jenipapo obedecem a um padrão copiado do antigo grupo, e não são fruto de investimentos individuas; são doações. Há pelo menos 05 pessoas na comunidade do Jenipapo que não participam do grupo, mas que o ajudam moral e financeiramente. Sempre que os penitentes precisam de algo recorrem a tais pessoas, e elas então veem em socorro. Quando a veste de um penitente não oferece mais condição de uso, recorre-se aos doadores - mesmo que o penitente possua condições financeira para adquirir uma nova.

O mediador acredita que o grupo de Penitentes nasceu por iniciativa de um rezador do Jenipapo que tinha por nome Dionísio e que, à época, atendia pessoas da comunidade que apresentavam problemas de saúde - muitos deixaram testemunhos confirmando que tinham alcançado a cura graças às rezas de seu Dionísio.

Oração “forte”

O branco das vestes dos Penitentes representa a plenitude
A seleção das rezas pelos Penitentes se dá levando-se em consideração as mais antigas, àquelas que mais tocam no emocional das pessoas. Segundo o mediador, têm orações que podem ser consideradas fortes, a exemplo do Pai Nosso - que, nas palavras do mediador, é uma reza poderosa e muito superior às outras. O mediador declara ainda que há outras rezas que tocam os indivíduos nos momentos de orações e cantos - nessas horas, o lado emocional e espiritual das pessoas balança. A maioria das rezas foi tirada do catolicismo antigo, e outras foram criadas pelos próprios integrantes do grupo.

Influências

O mediador esclarece que os penitentes são influenciados pelo catolicismo, não obstante a Igreja Católica não reconhecer o grupo como parte de um movimento. Mas a Igreja o respeita, e a paróquia do Jenipapo, inclusive, dá apoio. O exemplo maior disso foi o fato de o pároco daquela comunidade se mostrar por demais receptivo quando o grupo o procurou para expor a ideia de resgatar essa tradição, que havia sido interrompida há oito anos. O mediador deixa claro que, independente do sim ou do não do pároco, o grupo acabaria sendo formado, e diz ainda que, apesar de os penitentes ajudarem em atividades da Igreja, eles não vivem à sua mercê, não dependem dela, nem das ordens nem das orientações do padre para existir.
Os penitentes são influenciados pelo catolicismo

O pároco do povoado Jenipapo não sabe e jamais saberá quem são os penitentes. Ele pode até desconfiar quem são os integrantes do grupo, mas o mediador diz que jamais chegará até o padre para revelar que é um penitente, pois, se assim o fizesse, estaria revelando um dos segredos mais respeitados pela irmandade.

Todo contato da sociedade com os penitentes é feito através do mediador. Sempre que alguém manifesta interesse em ajudar o grupo, é por meio do mediador que a doação se realiza - o mediador é também o porta-voz do grupo mas, em nenhum momento, se coloca diante da sociedade como penitente. As doações ao grupo podem ser feitas em espécie ou gêneros alimentícios - que se transformam em cestas básicas e são distribuídas pelos agentes de saúde em comunidades carentes durante a quaresma, em nome dos penitentes.

Sete estações, sete dores

O grupo reza em sete estações
Os Penitentes rezam em dias de finados e na semana santa como forma de refletir sobre suas vidas, e isso também os leva a retratar a história de Jesus Cristo, do nascimento ao seu sofrimento e crucificação. O grupo reza em sete estações para representar as sete dores de Jesus Cristo – sempre lembrando que os penitentes só rezam em estações de números impares, e normalmente até o horário de meia noite (não obstante nossa insistência em saber porque aquele grupo de penitentes evita a todo custo os números pares, nossas indagações ficaram mesmo sem respostas).

Uma história a registrar

Quando o ritual do grupo chagou ao fim àquela noite, naquela residência do povoado Jenipapo, quem carregava a cruz de madeira tomou a dianteira, saiu na frente, e, um por um, os Penitentes foram deixando a casa andando de costas. O matraqueador foi o último a sair e nos demos também por satisfeitos. Já era tarde da noite e teríamos que tomar o caminho de volta para que Benício Junior produzisse sua matéria para o Site Lagartense.

Nessa noite, eu também precisava deitar minha cabeça no travesseiro para poder reviver e pensar em tudo que vi e ouvi, e assim produzir um texto em que pudesse contar do meu jeito a história interessante do resgate da tradição dos Penitentes do Senhor do Bonfim do povoado Jenipapo.


Fotos: Adriana Paixão, Mônica Barbosa, Kiko Monteiro
Agradecimentos: Adriana Paixão, Mônica Barbosa, Kiko Monteiro, Afonso Augusto, Letícia Paz e Benício Junior.